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Qua, 25 de Outubro 2017 - 16:25

De reclamações da merenda a brigas entre alunos: conheça os mediadores das escolas paulistas

Por: Mariana Alvim - BBC Brasil em São Paulo

 
O pior aluno da escola. Assim Richard, de 17 anos, define a si mesmo no passado, antes de decidir "mudar" e deixar para trás suas "atitudes de criança". Direcionando um olhar de cumplicidade para o educador Victor Moraes Filho, de 45 anos, o aluno do 9º ano da Escola Estadual Jornalista David Nasser, na capital paulista, evidencia o laço de confiança que serviu de base para a sua pronunciada mudança.
 
Richard batia de frente com professores e deixava as tarefas escolares de lado. Esse era o seu dia a dia escolar.
 
"Eu era cabeça dura, as coisas entravam pelo meu ouvido e saíam pelo outro. Repeti quatro vezes de ano. Voltei esse ano, e já não tenho mais ocorrências. Isso foi graças ao mediador, porque não faltou conversa. Ele nunca desistiu de mim. Por essa insistência dele, acabei me tornando o homem que sou hoje. Obrigado", diz Richard, se dirigindo a Moraes Filho.
 
O diálogo, que teoricamente deveria ser constante na rotina escolar, é material de trabalho para milhares de profissionais que, como Moraes Filho, buscam devolver a tolerância ao cotidiano das escolas estaduais de São Paulo.
 
Moraes Filho é um "mediador". Hoje, há 3,5 mil deles no Estado; a partir da formação oferecida a outros profissionais neste mês, o número passará para 6.795 (5 mil vice-diretores e 1.795 professores-mediadores, profissionais inteiramente dedicados à mediação).
 
A promessa é de que todas as escolas da rede estadual terão pelo menos um mediador - algumas vão contar com mais de um profissional dedicado à função, o que será definido a partir de índices de vulnerabilidade social e de violência registrados por escola pela pasta.
 
Dados locais e nacionais mostram a realidade da violência nas escolas - a qual o governo estadual buscar frear com a ampliação da mediação nos colégios.
 
Segundo dados da Prova Brasil 2015, 22,6 mil professores do 5º e 9º ano relataram terem sido ameaçados por algum aluno no último ano. De um total de 262,4 mil professores de todo o país que responderam ao questionário, 51% testemunharam, no último ano, agressão verbal ou física de alunos dirigidas a professores ou funcionários da escola.
 
Já no Estado de São Paulo, pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva a pedido do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) mostra que 85% dos professores souberam de casos de violência nas escolas estaduais em que trabalham; outros 51% dizem já terem sido vítimas de violência em ambiente escolar.
 
"Todas as pessoas deveriam procurar dentro de si a tolerância, saber ouvir, ser aberto ao diálogo... Mas dependendo do ambiente, não sobra tempo. É o tempo relógio e o tempo emocional. Eu ouço 'ene' problemas: tenho que saber filtrar e não deixar isso abalar o meu emocional", explica Nailza Fernandes Veiga, de 50 anos, professora-mediadora da Escola Estadual Professor Manuel Ciridião Buarque, na Lapa, bairro de classe média na capital paulista.
 
"A mediação tem que deixar um marco dentro da escola. E o maior marco dentro da escola é a abertura de diálogo", acrescenta ela.
 
Na prática, a rotina de mediadores como Veiga e Moraes Filho inclui o agendamento de encontros com famílias, o registro escrito de conflitos na escola e a organização de campanhas e eventos na unidade.
 
Os casos de intervenção mais comuns nas escolas envolvem agressões (verbais e físicas), depressão entre os alunos e ataques nas redes sociais. Mas, diferente do que pode indicar o nome da função de "mediador de conflito", Moraes Filho destaca que seu trabalho se dá ao longo prazo - e não em "apagar incêndios".
 
"No início, eu chegava no ponto de resgate. Eu ainda tenho que fazer isso hoje, mas agora trabalho muito com a prevenção. Eu vejo uma fumacinha ali, tenho que jogar água, porque daqui a pouco o incêndio chega. É um passo de formiguinha", diz Moraes Filho.
 
Mediação entre a escola e a rua
 
Na cartilha da atuação de Veiga, estão algumas práticas que vão de encontro ao que é praticado cotidianamente em algumas escolas: chamar os pais do aluno para a escola "de surpresa", por exemplo, está longe do roteiro indicado; o mesmo acontece com a indução de que alunos peçam desculpas uns aos outros.
 
Segundo Veiga, tudo deve ser transparente, conversado e espontâneo. A transparência se estende também aos professores: a educadora indica que eles façam registros escritos de ocorrências, como forma de documentar e embasar a gestão de conflitos.
 
Na rede estadual, a formação em mediação tem carga horária de 40 horas e inclui conteúdos como direitos de crianças e adolescentes e métodos para resolução de conflitos.
 
A mediação escolar tem origem em arbitragens no ambiente jurídico e ganhou tradição em países como Portugal, Estados Unidos e Argentina.
 
No Brasil, houve algumas experiências, sobretudo na educação pública, no Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Sul e Distrito Federal - mas é São Paulo que se destaca pelo tempo e abrangência deste tipo de iniciativa.
 
No Jardim Macedônia, bairro na periferia de São Paulo onde fica a Escola Estadual Jornalista David Nasser, Moraes Filho busca otimizar recursos. O Conselho Tutelar, ONGs, empresas e um posto de saúde municipal, o Pronto Atendimento Jardim Macedônia, são chamados de "parceiros" da escola. Se o mediador percebe sinais de depressão em um adolescente, por exemplo, ele encaminha para o posto; um grupo de teatro formado ali tem o apoio de uma empresa no transporte dos alunos para apresentações.
 
A ligação com a comunidade, para Moraes Filho, significa também conhecê-la.
 
"Conheço essa comunidade inteira, sei onde mora cada aluno meu. Essa escola é a minha vida. Se um aluno me chama agora, por exemplo, eu paro tudo", conta o mediador. "Graças a deus, os pais também têm muita confiança em mim. Às vezes vou na casa deles, falo no WhatsApp...".
 
O envolvimento da família é considerado fundamental para que o trabalho da mediação traga resultados.
 
"Tenho dias específicos para atender às famílias. E quando eu ouço as famílias, às vezes eu entendo por que o aluno está tão tenso. Alguns pais já se acostumaram com isso, às vezes eu nem preciso procurar e eles ligam pedindo para falar com a mediadora", afirma Veiga.
 
Até mesmo na cozinha ela é chamada para mediar conflitos entre alunos e merendeiras: "Eu estou onde precisar: um dia estou na minha sala, outro dia em outra, e até na cozinha. Os alunos reclamam que o arroz está duro, eu vou lá, converso com as cozinheiras, e explico para os alunos: é que o arroz é integral, não é que está duro!"
 
Acúmulo de funções
 
Tamanha capilaridade dos mediadores, no entanto, é vista como um sinal de sobrecarga por críticos da aplicação da mediação nas escolas paulistas.
 
Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no início do mês, a presidente da Apeoesp, Maria Izabel Azevedo Noronha, defendeu a adoção da mediação nas escolas estaduais - mas criticou que esta função seja delegada a vice-diretores, e não somente a profissionais inteiramente dedicados à função.
 
Beatris Cristina Possato, doutora em Educação pela Unicamp, cuja tese teve como objeto os mediadores em São Paulo, também aponta preocupação com o acúmulo de funções.
 
"Acredito que seja muito difícil alguém que ocupa um cargo na gestão escolar exercer esse papel. O vice-diretor da rede estadual de ensino de São Paulo, na maioria das vezes, possui uma sobrecarga de trabalho (assim como outros profissionais da educação) e não poderia ser responsabilizado por mais essa atribuição. Mediar uma situação é um processo lento e dialogal, que demanda tempo e continuidade", escreveu Possato à BBC Brasil por e-mail.
 
Em sua pesquisa, entre outras abordagens, Possato acompanhou a rotina de um mediador do Estado.
 
"Ele passou a assumir todos os problemas de convivência e lidar com os conflitos existentes na escola. Hora sua função se assemelhava a de um inspetor, hora de um diretor de escola. Demonstrava sentimento de impotência frente a todos os problemas, sem saber muito bem como resolvê-los", aponta a pesquisadora. "Não havia um projeto coletivo, que envolvesse a comunidade escolar, para se amenizar as manifestações de violências daquele espaço".
 
"Para que a mediação escolar seja significativa, todos os integrantes da escola devem estar envolvidos nessa proposta. Se avaliarmos experiências exitosas de outros países como Chile, Argentina, Espanha, Portugal, entre outros, veremos que os programas trabalhavam com equipes de mediadores que continham todos os segmentos da escola (alunos, professores, funcionários, gestores, etc), além de pais e representantes da comunidade e não se centravam em uma única pessoa", acrescenta. 
 
Em nota, a Secretaria de Educação do Estado defendeu que a responsabilidade do mediador deve ser compartilhada. O papel deste profissional seria o de articulação.
 
"Culturalmente, os vice-diretores são responsáveis pelo atendimento aos alunos e aos seus familiares. As questões de indisciplina e conflitos surgidos na escola, geralmente são levados para eles resolverem. Assim sendo, a secretaria resolveu investir em orientação e formação para que a atuação dos vices seja qualificada e eles possam organizar e disseminar, junto à equipe escolar, ações que minimizem os conflitos nas escolas", diz a pasta.
 
Ainda segundo a Secretaria, nas escolas em que há mediadores, o número de incidentes - que vão da evasão à agressão física - caiu 70% de 2014 a 2017.
 
"A secretaria acredita que, com ao menos um profissional treinado em cada unidade, o programa alcançará melhores índices", diz a secretaria.
 
Punição
 
Para além de índices, Veiga e Moraes Filho sentem o impacto do próprio trabalho em suas trajetórias pessoais. Com frequência, o ambiente de suporte e tolerância que ajudaram a disseminar serve também para apoiá-los em momentos delicados de suas vidas.
 
"Meu pai estava muito doente, na fase terminal. Eu estava em sala, tremendo. Até que um aluno veio me perguntar: você tá beleza? Eu falei que estava. Eles me forçaram a formar uma roda e conversar, fizeram uma mediação comigo. Chorei bastante", lembra Moraes Filho.
 
"As pessoas costumam dizer que eu sou paizão. Eu não consigo entender que dê punição a aluno. Por quê? Eu fui um aluno complicado. E eu tive uma professora que acreditou em mim, e hoje estou aqui. Assim como ela acreditou em mim, eu acredito em todos eles. Para mim não existe aluno perdido. Já perdi alunos? Já. Por overdose? Já. Mas eu luto pelo meu aluno", conta o mediador.
 
A punição, segundo Veiga, não está nem em sua linha de trabalho, nem em seu dever.
 
"A punição nunca deve estar nas mãos do mediador. Não apoiamos a punição. O aluno tem que se ouvido, tem que ter o espaço dele, se sentir parte da escola. Não desautorizamos o diretor, mas eu faço meu trabalho: converso, falo para entendermos o que aconteceu. Quando eu falo para ouvirmos a situação do aluno, eu já peneiro e falo: olha, não foi tudo isso. Porque cada um que se vê dentro do conflito olha apenas para o seu lado, e eu ensino a olhar para os dois lados", conclui a mediadora.
 
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