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Qua, 09 de Julho 2014 - 11:27
Vamos às atividades do dia: assistir aos jogos da Copa, ajudar em casa e correr. São 19 horas de quarta-feira, 25 de junho, pós-partida sem gols entre França e Equador. André Luiz Ribeiro põe o moletom e a bermuda, calça o tênis e desce a escada de casa correndo. Abre o portão de ferro verde-musgo, alcança a ruela inclinada onde mora e dispara. Com música nos ouvidos, some no breu da vizinhança. Pelos cálculos da mãe, Marlene Luíza de Oliveira, dona de casa de 45 anos, o primogênito retornaria em uma hora e meia. Estourando. Naquela quarta, André não voltou.
Sobe e desce ladeira, desemboca no beco apertado, cumprimenta d. Cida do mercadinho. Acelera o ritmo. Os pés ligeiros de André serpenteiam entre as ruas do bairro Jardim Ângela, em Parelheiros, zona sul de São Paulo. Assim se vão 45 minutos. Percorridos quatro quilômetros, já está no bairro vizinho, Balneário São José. Naquela altura, nos fones de ouvido o rapper Criolo canta Lion Man: “Porque se fosse pra ter medo dessa estrada eu não estaria há tanto tempo nessa caminhada.”
A reação das pessoas na rua, que se afastam assustadas, antecipa o que acontece em seguida. “Vi que estavam me olhando. Virei para trás e um carro passou em alta velocidade, aí já parei. Dei um pulo e fiquei do lado. Eles pararam (o carro) e levantei a mão porque achei que era um assalto. Se não tivesse parado, teriam me atropelado”, relata André, professor de história de 27 anos.
Dois homens descem do Fusca vermelho-ruge. Um deles desfere o primeiro soco em André, que está com os braços levantados. O mesmo sujeito o agarra pelo pescoço e aplica um mata-leão. “Quê que aconteceu?”, berra o professor, desnorteado, entre murros e pontapés. “Isso eu não tenho certeza, mas acho que ele falou ‘você roubou meu pai’. Só que, meu”, explica o professor, no sotaque paulistano carregado, “já fui levando pancada nessa hora. Eles não esperaram que eu falasse algo, sabe? Já vieram me batendo.”
Caído, sente a perna esquerda sendo puxada, esticada e, por fim, pisoteada. Se tentavam quebrar? Na dúvida, André evita, sacolejando a perna como pode. “C*zão, filho da p***!”, gritam mais 3, 9, 15 pessoas que também têm vez na ação, entre elas, mulheres. “Abandonado cão / sozinho na multidão”, continua Criolo nos fones de ouvido, agora largados em algum canto entre as pernas dos agressores. “A solidão no coração de alguém / paz para os meus irmãos seguirem nesse mundão.” Um dos homens que chegaram no Fusca vermelho se aproxima com uma corrente, dessas de aço, e prende braços e pernas de André, agora de barriga no asfalto. A tentativa de linchamento durou uns quatro minutos, até que... “Vai buscar o facão”, pede um deles. O colega vai até o carro, mas os bombeiros chegam.
Vamos às atividades do dia: abrir o bar, organizar as mesas e esperar a clientela. São 19h45 de quarta-feira, 25 de junho, quase uma hora depois de França e Equador. O comerciante Djalma dos Anjos Nonato, de 53 anos, administra o ponto cravado na Rua João Batista Gomes Ciqueira, 42, no Balneário São José. Trinta anos no mesmo boteco comprido, sem nome e de paredes brancas gastas. E um Fusca vermelho-ruge estacionado na porta.
Seria mais um dia de trabalho comum se três sujeitos não tivessem galgado os degraus do bar e anunciado assalto, arma em punho. Djalma entrega os R$ 480 do caixa e os ladrões desaparecem no breu das ruelas do bairro. “Ladrão! Pega ladrão!”, grita Djalma. Ele sai correndo, um negro com poucos fios grisalhos na cabeça. Na sua cola, um amigo que estava próximo ao bar e viu tudo. Os dois correm até a esquina, a 30 metros do boteco. “Ladrão! Ladrão!”, continuam.
Um dos assaltantes atira. O dono do bar se esquiva e vê a bala resvalar próximo ao casarão da esquina. Com medo de um novo tiro, espicha milímetros do olho esquerdo para espiar a rua. Dois homens já vão longe no sentido contrário; um deles corre em direção a Djalma. “Se fosse você, não ia suspeitar que era ele de verdade? Ainda veio voltando”, relembraria o dono do bar, ainda enfurecido uma semana depois.
Levantada a suspeita, sem ladrão algum por perto além do sujeito que corre de volta, as pessoas da rua o seguram e começam a espancá-lo. O dono do bar, não. Diz ele que pediu aos agressores que não batessem no suspeito porque já tinha chamado a polícia. Pouco depois, os bombeiros chegam.
No boletim de ocorrência registrado no 101º Distrito Policial, no Jardim das Imbuias, consta que, segundo o proprietário do bar, André e duas pessoas ainda não identificadas roubaram cerca de R$ 480. Na fuga, André teria sido detido por moradores, que o agrediram. Djalma não é citado como um dos possíveis agressores. “Com a chegada da viatura, as pessoas se dispersaram. Por isso, segundo a polícia, não foi possível identificar quem bateu em André. O professor foi socorrido por uma equipe de resgate do Corpo de Bombeiros.”
O carro dos bombeiros circulava por acaso pela rua secundária e escura. Para d. Marlene, católica convicta, foi Deus, um milagre, uma coisa inexplicável. A polícia se juntou poucos minutos depois. E o professor suspeito de roubo ainda estava acorrentado, de barriga no chão. “Quem está com a chave?”, quis saber um dos policiais. O proprietário do bar foi buscar no Fusca vermelho, lembra André. Sem documento - porque, quando corre próximo ao bairro, prefere não levar - e sem conseguir se mover, André apressou-se em balbuciar o que conseguia: “Eu fui confundido, sou professor de história”.
Desde que se formou pela Unesp - em Assis, a 437 quilômetros da capital -, André pode ser visto, 31 horas por semana, na Escola Estadual Juventina Marcondes Domingues de Castro, no Grajaú. É onde leciona história geral e brasileira para alunos de sétima e oitava séries.
“Já que você é professor, fala um pouco sobre a Revolução Francesa”, teria dito um dos bombeiros. Obra do destino, esse foi o conteúdo final repassado por André aos alunos da sétima série antes das férias. “Falei principalmente sobre a ascensão burguesa, o fim do poder político monárquico e clerical. Disse que a França foi onde o Antigo Regime se manifestava com maior força e que a Revolução tem seu marco inicial em 1789, com a Queda da Bastilha. Isso daí, se um professor não lembrar, para tudo!”
André parou. Os policiais o sentaram na calçada e pediram para aguardar. Iriam ao pronto-socorro municipal Balneário São José, algumas ruas dali. “Ô, professor, a gente não vai poder te colocar aí no banco não. É padrão nosso. Se a gente colocar você no banco pode até sofrer alguma represália dos superiores”, teria dito um dos policiais.
Duas horas de PS depois, André chega ao 101º DP, onde o pai e o China, um amigo da família, já o aguardavam com os documentos. É que Marlene, estranhando a demora do filho, ligou no celular e foi atendida por um dos policiais. Objetivamente, ouviu que André estava no pronto-socorro, muito machucado, e em breve seria levado até a delegacia. A mãe reuniu os documentos, mas não teve coragem de ir ao DP.
O apoio veio do pai, José Airton Ribeiro, um homem acabrunhado, de pele clara, olhos verdes e poucas palavras. Os dois se abraçaram, perto da meia-noite, e Airton se esforçou para dizer: “Olha, a gente vai sair dessa, porque a gente acredita em você, que você é inocente e que a justiça vai ser feita”. A mãe, mesmo avisada pelo marido sobre o rosto inchado e o olho machucado de André, mudou de ideia. Reuniu uma bermuda, uma camisa, um par de chinelos, escova de dente, pasta, sabonete e uma bolacha club social. E se encaminhou ao DP. O filho, já na cela, foi retirado para um abraço.
Pela foto tirada dois depois do episódio e amplamente compartilhada nas redes sociais, André parece mais gordo e negro do que é. Por alguns meios de comunicação, foi tido inclusive como “professor negro”. Mas consta no B.O.: pardo, 1,75 de altura, compleição magra, cabelo curto e liso. Por isso, o professor, que diz ter sido confundido com um assaltante, refuta a ideia de ter sofrido racismo. Considera, no máximo, preconceito social. Talvez por causa das roupas que vestia durante a corrida. Ou mesmo pelas tatuagens na perna. Ele tem várias outras espalhadas pelo braço direito, costas e peito, onde gravou os nomes da mãe e do pai. A maioria dos desenhos foi feita pelo irmão Anderson, de 24 anos, que é tatuador.
Na primeira noite preso, André se manteve acordado no colchonete, quase rente ao chão. Era medo de dormir e não acordar mais. Com o corpo dolorido, não achava posição. Na memória, repassava em looping a cena dos braços e pernas amarrados para trás. “Lembrei do tempo de escravidão, sabe? As correntes...”. Entre os pensamentos, teve tempo suficiente para a resignação. Estava certo de que não daria mais aulas de história. Em tempo: os bombeiros informaram, pelo Twitter, que “em nenhum momento houve desrespeito ou deboche” na abordagem da corporação.
No dia seguinte, quinta, ainda desperto, viu no corredor um sujeito fazendo a faxina. “Senhor...”, chamou André. “Aqui a gente está na mesma pegada, não precisa chamar de senhor”, retrucou o rapaz. Mais tarde, o professor saberia que aquele era um dos presos, e não policial, como imaginava. “Tem como você arrumar um livro para mim?”, quis saber. E recebeu Eu Deveria Estar Morto, romance de Damien Jackson, com as páginas do primeiro capítulo arrancadas.
Marlene, que escutava a entrevista colada ao filho, leva as mãos à boca. “Meu Deus, que horror...”, deixa escapar em sussurro, impressionada com o título. Durante boa parte da conversa, ela mantém os braços no ventre, com as mãos entrelaçadas. Tem cabelos curtos tingidos de loiro, com alguns fios brancos na raiz, e olhos tristes. Chora repetidas vezes e, por isso, pede desculpas o tempo inteiro. “Para com isso, mãe”, pede André, com um carinho meio impaciente. Ou então, nos momentos mais delicados: “Tem nada não, mãe. Vem aqui! Te amo, tá bom? Fica de boa”.
Na quinta-feira, foi transferido para o 31º DP, na Vila Carrão, onde teria uma cela destinada a presos com ensino superior. Tendo emprestado o moletom para um colega de cela que sentia frio, na noite anterior, o professor deixou para trás as roupas do dia da agressão. E o Eu Deveria Estar Morto, a poucas páginas do final. Na sexta, o advogado Cláudio Reimberg obteve a liberdade provisória, assinada pela juíza Juliana Trajano de Freitas Barão.
Desde que André voltou para casa, no início da noite de sexta, Marlene controla suas saídas. No sábado do jogo entre Brasil e Chile pelas quartas de final, foi convidado de honra do aniversário da vizinha, que preparou um almoção. A segunda saída foi para o ato de apoio a ele, na terça, diante do 101º DP. André abraçou as pouco mais de 50 pessoas, boa parte delas usando camisa branca com a foto do rosto machucado - que tornou o caso conhecido nas redes sociais - e a frase estampada em letras garrafais: “Rico correndo é cooper, pobre correndo é ladrão”. A terceira saída liberada pela mãe foi no dia seguinte ao ato, quando André esteve no DP para pesar novos esclarecimentos ao delegado Ricardo Ricardo Toshiharu Neiva Igarashi, que fez o flagrante.
Naquela quarta, completava-se uma semana do ocorrido. Igarashi sustentou que o dono do bar reconheceu duas vezes o professor como um dos assaltantes. “Ele (Djalma) voltou aqui no dia posterior, olhou a fotografia e disse ‘É ele’.” Uma semana depois do assalto ao bar, pergunto a Djalma dos Anjos se em algum momento teve dúvidas da participação do professor no roubo. Ele titubeia. “Pode até não ser, mas que deu toda a circunstância para estar no meio... Pelo que pareceu, tem que ser ele. Como alguém vai passar perto de um roubo numa hora dessas da noite?” Com o B.O. registrado por André, o dono do bar também terá de responder judicialmente. Por tentativa de homicídio.
Na delegacia estavam a mãe, o irmão e alguns amigos, entre eles Alessandro Rubens de Matos, de 36 anos, que capitaneou o ato de apoio na noite anterior, esgoelando-se ao microfone. Professor de história e geografia de André no primeiro ano do ensino médio, ele semeou no “excelente aluno” a certeza da docência como profissão. “Quando dava aula, o professor Alessandro citava uma frase do Ndee Naldinho que me marcou: ‘Se tu lutas, tu conquistas’. O jeito como ele dava aula, como prendia a atenção, me motivou. Dali eu pensei: vou estudar, vou fazer escola pública e vou dar aula em escola pública.”
No próximo dia 14, seguinte à final da Copa, têm início as aulas do segundo semestre letivo. No dia em que André celebrará o retorno às salas de aula, a França festejará os 225 anos da Queda da Bastilha.