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Qui, 16 de Março 2017 - 20:21

'Tenho aluno que viu o pai matar a mãe, aluna abusada pelo padrasto': o isolamento de professores diante de casos de violência e bullying

Fernanda da Escóssia - Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil

 
Professora de Língua Portuguesa da rede pública há 29 anos, Jonê Carla Baião sempre pede aos alunos, no início do período letivo, uma redação curta sobre a vida deles. Já leu e ouviu muita história, mas ainda se atordoa com relatos como o que lhe foi entregue no primeiro dia de aula de 2017 por uma aluna do 9º ano:
 
"Eu sempre fui zoada e a última vez em que tive paz na escola foi no Jardim (de infância); depois disso não tive um ano sequer em que não tenham mexido comigo", escreveu a jovem, que, negra e muito magra, era alvo constante de ofensas dos colegas, e os professores não percebiam.
 
Outra vez, também no primeiro dia de aula, uma aluna vinda de São Paulo escreveu que apanhava do pai e por isso havia se mudado para o Rio para morar com a mãe e o padrasto - que passou a abusar sexualmente dela.
 
Tema constante de debate na escola pública brasileira, a violência nos colégios voltou à cena depois que Marta Avelhaneda Gonçalves, de 14 anos, foi morta por estrangulamento numa sala de aula do Rio Grande do Sul na semana passada.
Relatos de violência, agressão e bullying expõem tanto o sofrimento do aluno como o isolamento do professor para agir diante de casos que ultrapassam a competência de apenas "transmitir conhecimento".
 
Uma proposta em tramitação no Congresso há 17 anos, o projeto de lei 3.688, propõe a contratação de psicólogos e assistentes sociais na rede pública como forma de oferecer atendimento aos alunos e apoio aos professores no ambiente escolar.
 
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil elogiam o mérito do projeto, mas afirmam que é preciso pensar no conjunto da situação escolar. A Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), por sua vez, alerta que uma das dificuldades para que ele seja aprovado é sua viabilidade financeira e operacional.
 
Na avaliação da entidade, a contratação não pode ser feita em cada escola, mas sim em parceria com as secretarias de Saúde e Assistência Social - mudança já prevista no projeto. Parte dos municípios brasileiros ainda não consegue pagar o piso nacional do magistério (R$ 2.298,80), e, para a Undime, ter psicólogos e assistentes sociais recebendo valor possivelmente superior criaria conflito com os professores.
 
Rotina de prevenção
 
Uma professora da História, que concordou em dar entrevista à BBC Brasil sob anonimato, vive numa escola municipal da Baixada Fluminense situações semelhantes às relatadas por Jonê Carla.
 
"Tenho um aluno que viu o pai matar a mãe. O garoto é hiperativo e não para quieto. Agora o pai vai sair da prisão. Como vai ser? Tive aluna que sofria abuso sexual do padrasto, outra do pai. Tivemos que chamar o Conselho Tutelar. Alunos e professores precisam de ajuda para lidar com isso", avalia.
 
Em casos de abuso sexual ou violência doméstica, o professor é orientado a procurar imediatamente a direção da escola para que a denúncia seja apurada, recorrendo a órgãos como polícia e Conselho Tutelar.
 
Docente das redes municipal e estadual do Rio, Jonê Carla relembra uma ocorrência de abuso sexual encaminhada ao Conselho Tutelar. Segundo ela, a preocupação é que o professor não guarde o caso apenas para si e procure apoio para o aluno.
 
Especialista no tema da gestão escolar e doutora em Administração Pública, a pesquisadora Gabriela Moriconi, da Fundação Carlos Chagas, avalia que o suporte psicossocial proposto no projeto de lei ajudaria alunos e professores a não apenas reagir a "problemas" de um ou outro estudante, mas criar uma rotina de ação preventiva capaz de agir no conjunto das escolas.
 
Moriconi acompanhou projetos educacionais no Canadá e no Reino Unido e observou fatores que podem influir no clima da escola. Na experiência canadense, por exemplo, equipes multidisciplinares não ficavam fixas nos colégios, mas no sistema educacional, atendendo a várias unidades.
 
"É um suporte importante para um professor que já enfrenta questões variadas, como o salário baixo, a adequação da dificuldade da aula para turmas pouco homogêneas, ou turmas grandes, ou a definição de regras de convivência", afirma a pesquisadora.
 
"Psicólogos e assistentes sociais não trazem solução para todos os problemas, mas são uma forma de realizar um trabalho mais constante na escola e compreender o aluno em seu contexto. É preciso entender como esses alunos se sentem, se respeitados ou ameaçados", acrescenta.
 
'Bullying exige plateia'
 
A indisciplina também preocupa e atrapalha professores brasileiros. Pesquisa divulgada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em janeiro de 2015 mostrava que, entre 33 países comparados na Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (PISA) de 2013, o Brasil foi o lugar em que os professores mais se queixaram de estudantes indisciplinados.
 
Pelo menos dois em cada três professores brasileiros disseram ter problemas com o assunto em sala de aula. Entre os países pesquisados, a média era de 31% - pouco menos de um terço.
 
Entre o aluno ideal e a escola real, um dos caminhos é tentar entender as diferenças, avalia a pedagoga Cláudia Barreiros, mestre e doutora em Educação e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Educação Básica do Cap-Uerj, o Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
 
"O professor tem que partir do princípio de que os alunos são diferentes. Não adianta chegar à escola e dizer: 'ah, não era o que eu esperava'. Temos de lidar com estes alunos e suas realidades", afirma.
 
O Cap-Uerj implementou em 2011 um programa de combate ao bullying, preocupação relatada por professores ouvidos pela BBC Brasil.
 
Pesquisadora do tema, Barreiros destaca que o bullying pressupõe um praticante, um alvo e também uma plateia - as pessoas que dão ao praticante a "visibilidade" almejada. "Se é uma piada, todos estão se divertindo, é uma brincadeira. Se alguém começa a sofrer com a piada, já não é brincadeira", alerta.
 
Cláudia relembra o caso de uma aluna negra, gordinha, que sofria bullying contínuo. Alguns professores cobravam que a família ajudasse, estimulando um regime. "Eu me perguntava, mas e a cor, querem mudar também? Não vamos culpar a vítima. O bullying não resulta da diferença, resulta do preconceito", analisa.
 
Da experiência do magistério, ela guarda a lição de uma turma na qual meninos de 6, 7 anos perseguiam meninas chamando-as de "macacas" e "baleias". O melhor resultado obtido por uma professora contra o problema foi dizer claramente às crianças que racismo é crime punido com prisão.
 
"Temos de trabalhar no sentido educativo, claro, mas o professor não pode ser conivente ou leniente. É preciso deixar explícito que o preconceito não será tolerado", afirma.
 
Do mesmo modo, em casos de agressão, abuso ou violência doméstica, a orientação é levar imediatamente a denúncia às instâncias responsáveis.
 
Efeitos no professor
 
Diante da violência, da indisciplina e da rotina estressante de sala de aula, o professor também sofre as consequências.
 
O psicanalista Leandro dos Santos atendeu durante dez anos professores e diretores de escolas públicas do ABC paulista no ambulatório de uma faculdade particular em que dava aulas. As queixas mais comuns eram depressão, estresse e esgotamento nervoso.
 
"Até hoje atendo professores no consultório e observo um grande sentimento de impotência diante da rotina escolar", afirma Santos, mestre em Psicologia Escolar e doutor em Psicologia Clínica pela USP.
 
"Às vezes me sinto só diante de tanto sofrimento do aluno. Queria poder fazer mais", diz a professora de História da Baixada Fluminense. Ela conta que já trabalhou em uma escola pública em que havia um psicólogo e se sentia mais segura para abordar alunos com hiperatividade ou deficit cognitivo.
 
"O professor sozinho não dá conta. Por mais que o aluno se identifique com um ou outro professor, não fomos treinados para essa ajuda tão especializada", analisa Jonê Carla, a professora que pede aos alunos redações sobre suas vidas.
 
Na tentativa de melhorar a autoestima dos estudantes, Jonê Carla discute gênero, identidade, racismo, descobre histórias, escreve sobre o que aprende em sala de aula. E guarda em seu baú de professora relatos pungentes, como um poema escrito por um ex-aluno de uma escola em Guadalupe, na zona norte do Rio:
 
Mataram meu colega e eu não digo nada
 
Me chamam de zumbi e eu não digo nada
 
Me ameaçam e eu não digo nada
 
Estão em guerra e eu não digo nada
 
A seca está matando e eu não digo nada
 
Professor me dá os esporros e eu não digo nada
 
Morre gente e eu não digo nada
 
Ficam me criticando e eu não digo nada
 
O Brasil perde a Copa e eu não digo nada
 
Picham a escola e eu não digo nada
 
Pois agora chega, eu vou dizer tudo.
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