Seg, 25 de Setembro 2023 - 17:10
Por: Jornal da USP / Camila Almeida*
As últimas eleições presidenciais foram marcadas pela ascensão e consolidação de discursos conservadores no Brasil. Na educação, destaca-se o movimento Escola Sem Partido (ESP), criado em 2004 afirmando combater uma suposta "doutrinação ideológica de esquerda" por professores dentro das salas de aula. O ESP ganhou notoriedade no Brasil em 2015 com a criação de projetos de lei por deputados e vereadores que replicaram os ideais do movimento. Discursos semelhantes podem ser observados em toda a América Latina, trazendo as particularidades de cada país.
Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou os conteúdos verbais e imagéticos disponíveis nos sites do Escola Sem Partido e do grupo Con Mis Hijos No Te Metas (CMHNTM), da Argentina – que possui similaridades com o movimento brasileiro – entre os anos 2019 e 2022. O estudo buscou explorar a forma como os discursos são construídos, compreender as intenções por trás deles e contextualizar seu papel na propagação de estigmas e estereótipos na educação.
O referencial da pesquisa vem da análise do discurso, campo disciplinar que entende o discurso como o lugar onde se pode observar a relação entre linguagem e ideologia. "A análise do discurso vai tentar encontrar o que está por trás de sua constituição e desestabilizar determinados ideais. Esses grupos antiprogressistas colocam as escolas como uma ameaça à juventude, e na minha dissertação eu tento 'chacoalhar' essa afirmação, além de mostrar que ela não é tão categórica", explica ao Jornal da USP Talita Souza, mestra pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH e autora da dissertação.
A pesquisadora encontrou pontos de encontro nas narrativas utilizadas pelos movimentos, como uso de imagens que remetem à infância e à tentativa de construção de um imaginário por trás das escolas e professores. De acordo com Talita Souza, há um processo de vilanização estruturado por meio de verdades apresentadas como absolutas e irrefutáveis. "Eles colocam essas informações como dados que não podem ser contestados e fazem questão de trazer acusações como se fossem de 'conhecimento público', convocando a sociedade para barrar esses acontecimentos."
Divergências entre os discursos investigados também foram achadas: enquanto o Con Mis Hijos No Te Metas se estrutura por meio do discurso familiar, o ESP se constrói em torno de uma fala de desvinculação partidária. "O [movimento] brasileiro quer transmitir a ideia de neutralidade desde o seu nome: 'nós não somos nem de direita nem de esquerda, somos o Escola Sem Partido'.
O CMHNTM, por sua vez, enfoca a preocupação com a instituição familiar – evidente também na escolha de seu nome, que em português pode ser traduzido para "Não Mexa Com Meus Filhos". Na Argentina, inclusive, o movimento se apropriou, dando novo significado, do uso pelas manifestantes do lenço na cabeça. Na cor branca, o lenço era símbolo das Mães da Praça de Maio – luta que é parte "importante da identidade da sociedade argentina". Mas, diferentemente das mães que buscavam seus filhos desaparecidos na ditadura militar, o CMHNTM adotou os lenços azuis.
Família tradicional
O movimento Con Mis Hijos No Te Metas se originou no Peru, em 2016. Na época, o governo buscava implementar uma reforma no currículo escolar que incluiria questões de gênero e violência contra a mulher na educação nacional. O Estado peruano justificou a medida como uma forma de combate às altas taxas de feminicídio e homofobia no país. Contudo, a ação sofreu uma forte oposição da parcela conservadora e cristã da população. "A reforma foi motivo de desconfiança e revolta, e o currículo escolar nacional não foi alterado. A partir desse acontecimento acabou se criando o Con Mis Hijos No Te Metas, que se espalhou para outros lugares", explica a pesquisadora.
Na Argentina, o CMHNTM surgiu como uma resposta à Lei Nº 26.150 de 2006, que instituiu o Programa Nacional de Educação Sexual Integral no país, e à Lei nº 27.610 de 2020, garantindo o aborto legal e gratuito. O movimento adota alguns aspectos do peruano (como o uso do azul e rosa na identidade visual, conhecidos por darem cor de itens "masculinos" e "femininos", respectivamente) com a incorporação de símbolos nacionais argentinos, tal qual a própria bandeira do país. Dessa forma, alinhando textos "pró-vida" e ideais conservadores, o CMHNTM vai atrelando a defesa da vida à defesa da própria pátria.
"A educação sexual e de gênero são pautas vistas como 'ideologia de gênero', que seria prejudicial às crianças. Além disso, os professores são sempre retratados como alguém que irá corromper a juventude, criando assim uma ideia de que existe uma ameaça rondando as escolas", diz a pesquisadora.
O conceito de ideologia de gênero foi utilizado pela primeira vez no ano de 1998, em uma Conferência Episcopal da Igreja Católica no Peru. A definição do termo é motivo de discussão no ambiente acadêmico. Popular entre grupos antiprogressistas, ele é usado para repudiar os estudos de gênero, que supostamente seriam usados para "destruir a família" por meio de ensinamentos considerados impróprios.