Qui, 14 de Janeiro 2016 - 12:01
Por: Ana Maria Lopes
Depois de dedicar o mestrado ás crônicas de Machado de Assis, a jornalista Miriam Bevilacqua Aguiar continuou pesquisando o gênero até descobrir que a letra de uma canção pode sim ser considerada uma crônica. A questão foi aprofundada pela jornalista na sua tese de doutorado "Tempo e artista: Chico Buarque, avaliador de nossa cotidianidade", apresentada à Faculdade de Letras da USP.
"Eu pretendia analisar a produção de Rubem Braga; mas logo no começo da pesquisa, encontrei um crônica do próprio Braga dizendo que a música 'A Banda', de Chico Buarque, era uma boa crônica. Então, o estudo foi por este viés, que considerei mais rico", explica a pesquisadora, que analisou 24 entre as centenas de músicas compostas durante as cinco décadas de carreira de Chico Buarque.
"A Banda é algo que todo mundo entende e que emociona todo mundo. É simples, tem graça e tem lirismo, é tão nova e tão antiga, é uma boa crônica, cheia de poesia", escreveu Rubem Braga.
A canção é umas cinco selecionadas por Miriam a pedido da Agência de Notícias da USP, como as mais representativas da obra do compositor. A pesquisadora também destaca 'Roda Viva', 'Apesar de Você', 'Construção' e 'Cotidiano'.
Em comum, todas as canções têm o fato de retratar o cotidiano brasileiro em forma de crônica. Talentoso cronista, Chico apresenta situações cotidianas, interpreta fatos e propõe soluções para problemas sociais em composições que falam da situação política do País, da pobreza dos trabalhadores, da malandragem e do capitalismo.
"Apesar de você, composta em 1970, em plena ditadura, e lançada na forma de um compacto, vendeu cem mil cópias, antes que o governo compreendesse a letra e censurasse a canção. Disfarçada por uma briga de namorados, era um recado do povo brasileiro aos militares, prometendo uma vingança sem armas", exemplifica a jornalista na seleção musical para a Agência de Notícias da USP.
A pesquisa evidencia como as composições se assemelham a crônicas, tanto pela estrutura do texto, como na escolha de temas e no seu compromisso com a realidade,
A tese contextualiza a vida e obra de Chico Buarque e explica como ele tornou-se, ainda nos anos 60, praticamente uma unanimidade, admirado tanto entre intelectuais quanto entre as camadas mais populares.
Miriam Bevilacqua pesquisou como a imprensa retratava o compositor nas décadas de 60 e 70. "A mídia percebeu, como Chico desde o início de sua carreira colocava em suas canções as aspirações de toda a sociedade brasileira, já sufocada por uma ditadura", analisa a jornalista.
Entre as centenas de´canções compostas por Chico nestas décadas, são os versos de "Tempo e Artista"que abrem a tese de 238 páginas e explicam a pesquisa de Miriam Bevilacqua e a genialidade da obra do compositor: "Imagino o artista num anfiteatro / onde o tempo é a grande estrela / Vejo o tempo obrar a sua arte / Tendo o mesmo artista como tela".
"Derivado do latim e do grego, o termo crônica já demonstra que a crônica tem o conceito de tempo como seu elemento principal (Chronica / Khrónos), explica a jornalista.
Na conclusão de sua tese, Miriam Bevilacqua destaca que a aparente leveza da crônica não a impede de ser reflexiva, de denunciar e propor um debate político e social.
"Qualquer canção buarqueana que tenha como tema o cotidiano também poderia ser crônica de jornal. Dificilmente um artista escolheria como temas um pivete de rua, o movimento migratório, uma construção, um pedreiro ou um casamento burguês" conclui a pesquisadora.
SERVIÇO: "Tempo e artista: Chico Buarque, avaliador de nossa cotidianidade" está publicada na íntegra na Biblioteca Digital da USP: www.teses.usp.br
Contatos com a autora, Miriam Bevilacqua, através do e-mail miriambevilacqua@uol.com.br