Ter, 10 de Julho 2012 - 18:53
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Destaque da seção Teses e Dissertações em 2010, a psicanalista Maíra Soares Ferreira acaba de transformar o seu mestrado na Faculdade de Educação da USP em livro. "A rima na história, o verso na escola", lançado pela Boitempo Editorial, é resultado de uma pesquisa com professores e estudantes de uma escola pública da capital paulista, descendentes, em sua maioria, de migrantes nordestinos.
A pesquisa, que comprova a importância da inclusão para superar preconceito, foi tema da dissertação "A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo".
Maíra inspirou-se nos diários de viagens de Mário de Andrade pelo nordeste brasileiro para mergulhar no rico universo dos migrantes nordestinos que chegaram a São Paulo na década de 50 e instalaram-de à beira da Marginal Pinheiros. A partir das dificuldades de inserção dessa comunidade na única escola pública de ensino fundamental da região, a pesquisadora foi buscar o verso e a poesia popular remanescentes no Nordeste, recriados pelas formas de composição poética e musical contemporâneas, como o repente e o rap.
A psicanalista revela o potencial crítico e transformador desse mix cultural, uma espécie de reinvenção da cultura popular nordestina, uma forma de resistência das tradições do interior do País no coração da metrópole.
“A obra tem a virtude de demonstrar a importância de revisitar as origens, o passado esquecido, e aponta-nos a estratégia fundamental de ‘formação’, no sentido amplo do termo, que envolve, como sustenta a autora, um meio de afirmação étnico-social sem o qual dificilmente se obterá a adesão dos alunos das camadas populares – alunos esses que clamam por renovação no interior das instituições públicas de ensino”, afirma Mônica Guimarães Teixeira Amaral, professora da Faculdade de Educação da USP.
Quando a psicanalista começou a sua pesquisa sobre culturas juvenis e Educação em uma escola pública, ela não sabia qual seria o seu ponto de partida. Maíra reparou que alunos da 8ª série, que tornaram-se o foco do trabalho, passavam as aulas livres no pátio cantando rap e criando rimas.
Com a ajuda de professores, entrou em sala de aula e começou a fazer perguntas sobre a origem, as preferências e expectativas destes jovens em relação ao futuro.
Os estudantes eram moradores da Favela Parque Real, descendentes de nordestinos, que negavam suas origens e tinham vergonha de falar que eram negros ou indígenas. Para a psicanalista Maíra, faltava na escola em que estudavam um elemento fundamental, que era o reconhecimento daquela comunidade, das suas manifestações culturais e artísticas e do repertório daqueles jovens estudantes.
"Como em muitas formas culturais e da diáspora africanas, a prolífica autonomeação do hip-hop é um meio de reinvenção e de definição de si mesmo. Os grupos hip-hoppers – dos afro-americanos, jamaicanos, porto-riquenhos e afro-caribenhos aos afro-brasileiros, afro-indígenas, sertanejos nordestinos etc. – indicam a formação de um novo tipo de família cujos vínculos interculturais se estabelecem em um cenário urbano hostil, tecnologicamente sofisticado e multiétnico”, analisa a autora em um dos capítulos do livro recém-lançado.
O livro "A rima história, o verso na escola" conquistou o Prêmio Patativa do Assaré, concedido pelo Ministério da Cultura, em 2010.
Leia aqui a resenha da dissertação do mestrado que originou a obra, publicada pela APEOESP em 2010.
"Uma pesquisa realizada na Faculdade de Educação da USP demonstrou que é possível modificar o estigma dos estudantes da periferia, utilizando em sala de aula o que é produzido cotidianamente por eles, como a música, a poesia e os desenhos.
Na dissertação A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo, a psicanalista Maíra Ferreira destaca o papel da escola no trabalho de orientar os estudantes na identificação do elo com seus antepassados.
A pesquisadora defende que a identificação com o conteúdo escolar leva os jovens a se afirmarem como verdadeiros sujeitos políticos. Maíra estudou durante dois anos uma turma de 30 alunos, fãs de rap, da sétima série de uma escola pública localizada nas imediações da Favela Real Parque, localizada no Morumbi.
No início de seu trabalho na escola, a psicanalista percebeu que durante os intervalos das aulas, os estudantes dedicavam-se a rimar, improvisar e desenhar, demonstrando uma aguçada capacidade crítica, ausente da sala de aula. Apesar das manifestações artísticas durante o recreio, eles recusavam suas origens no ambiente escolar.
Segundo Maíra, essa recusa denuncia a “presença e permanência de políticas discriminatórias brasileiras desde a época dos cativeiros”. A escola, ao não reconhecer e contextualizar a importância da história da comunidade que atende, e não relacioná-la com o presente dos alunos, “perpetua a formação social e cultural do preconceito brasileiro”.
Rap
Para auxiliá-los no trabalho de autoafirmação, a pesquisadora passou a interferir nas aulas para demonstrar as relações entre a capacidade de rimar e improvisar do rap, um dos elementos do Hip Hop, e as produções culturais do cordel e dos repentes nordestinos.
Entre os estudantes que participaram da pesquisa, muitos são descendentes de afro-brasileiros e indígenas Pankararu, oriundos do sertão de Pernambuco, que migraram a partir da década de 1950 para São Paulo principalmente para trabalharem na construção do Estádio do Morumbi.
Para reconstruir essa estreita relação cultural, Maíra viajou para o Nordeste, para a região do Brejo dos Padres em Pernambuco, onde pesquisou o cordel e os repentes sertanejos como a cantoria de viola e o coco de embolada, que são expressões claras da tradição da oralidade, tão marcante no rap dos estudantes.
Cordel
Com uma filmadora na mão, a psicanalista andou pela região, ouvindo e gravando declamações espontâneas. “Em uma cidade chamada São José do Egito (PE) ouvi o seguinte ditado: "Aqui quem não é poeta é louco e quem é louco faz poesia”, conta Maíra.
Segundo a psicanalista, mesmo diante da violência social, a miscigenação étnico-social brasileira apresenta sua resistência: “das rodas de jongos e capoeria aos improvisos dos repentes e do rap está o movimento de resistência, apropriação e criatividade frente às políticas de discriminação existentes desde a escravidão”.
Essa constatação é a prova de que durante a história do País não houve aniquilação da cultura dos povos que sofreram com tais políticas, e sim recombinação, reinvenção e recriação.
Mas os resquícios da longa escravidão ainda são visíveis no cotidiano da periferia da metrópole. De acordo com a pesquisadora, “a formação social brasileira está longe de elaborar e superar esse trauma que permeia as instituições de ensino e os espaços jurídicos do País”.
Uma das soluções apresentadas para a superação e solução deste conflito é, segundo Maíra, ensinar aos alunos que eles podem e devem “atualizar as suas tradições” a fim de se apropriarem do passado, para construírem seus projetos futuros.
SERVIÇO: Confira "A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo" na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. Contatos com a autora, Maíra Ferreira, através do e-mail mairasoaresferreira@gmail.com"